Quase 730 mil contratos Fies estão com parcelas atrasadas há pelo menos um ano

Fonte: G1
Publicação: 09/08/2022
Link: https://g1.globo.com/educacao/noticia/2022/08/09/quase-730-mil-contratos-fies-estao-com-parcelas-atrasadas-ha-pelo-menos-um-ano.ghtml

O Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) considera como inadimplentes os devedores que tiverem parcelas com pagamento atrasado há pelo menos 90 dias. Mas 729.901 deles estão nessa situação há muito mais tempo, pelo menos 360 dias. O balanço, obtido pela produção da TV Globo junto ao Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), representa apenas os contratos que já estavam nessa situação em 30 de dezembro de 2021, e que estão inclusos no universo de devedores que poderão renegociar as condições de pagamento a partir de 1º de setembro.

No total de 2,7 milhões de contratos ativos do Fies no balanço do primeiro semestre, 1.873.989 se enquadram nas novas regras de renegociação, publicadas em 22 de julho, porque foram assinados até 2017 e já estavam, no fim do ano passado, na fase de amortização – quando o estudante já concluiu a graduação, já passou pelo período de carência e agora precisa pagar de volta as parcelas mensais, além dos juros.

O desconto varia entre 12% e 99% do saldo devedor, dependendo da situação da dívida e da condição socioeconômica dos financiados (veja mais abaixo).

Segundo o FNDE, 1,8 milhão de contratos estão aptos a pleitear a nova renegociação, que vai de 1º de setembro a 31 de dezembro — Foto: Ana Carolina Moreno/TV Globo

Mais de 216 mil contratos renegociados

Outros 216.258 contratos já foram renegociados entre março e junho, na primeira rodada de renegociações. O FNDE afirmou já ter recebido R$ 232 milhões em pagamentos atrasados nesse processo, mas o saldo devedor em 30 de junho, para efeito de comparação, era de R$ 9,8 bilhões.

É o caso do desenhista e estudante de engenharia Bruno Martins Giraldelli, de São Paulo, que há mais de dez anos começou uma faculdade de administração com financiamento do Fies, mas acabou abandonando o curso depois de perder um prazo de aditamento do programa, e ficar sem condições de pagar as mensalidades.

“Virou uma bola de neve”, contou ele ao Jornal Nacional. “No começo eu pagava R$ 500, né? R$ 500 e pouco. Só que eu não conseguia pagar porque eu estava desempregado.”

Um financiamento que durou três semestres entre 2010 e 2011 acabou se tornando, ao longo dos anos, uma dívida de mais de R$ 11 mil. No primeiro semestre, ele aproveitou a oportunidade da renegociação e conseguiu desconto de 86% no valor devido. “Parcelei em seis vezes e estou pagando”, disse ele, que em dezembro pretende finalmente quitar a dívida.

Descontos de até 99%

Na próxima rodada de renegociação, dos quase 730 mil endividados há pelo menos um ano, 444.920 poderão ter até 77% de desconto do saldo devedor. Outros 276.024 são pessoas inscritas no CadÚnico ou beneficiárias do Auxílio Emergencial de 2021, e poderão ter desconto de até 92%. Um número menor, de 8.957 contratos, está na mesma situação de vulnerabilidade, mas tem parcelas atrasadas há mais de cinco anos, e poderão conseguir 99% de desconto no valor devido.

Nos três casos, o pagamento poderá ser de até 15 parcelas.

Quem está com entre 90 e 359 dias de atraso poderá ter desconto de 12% no saldo, a serem parcelados em até 150 vezes. Já quem está em dia com as parcelas, e havia ficado de fora da versão original da medida provisória, também poderá quitar a dívida com o mesmo abatimento de 12%. Quem estiver com um a 89 dias de atraso primeiro terá que quitar as parcelas em aberto, para depois pleitear o desconto.

Dos 729 mil contratos com atraso de pelo menos 360 dias, a maior parte é de pessoas que não estão no CadÚnico, nem receberam Auxílio Emergencial em 2021. — Foto: Ana Carolina Moreno/TV Globo

A técnica em enfermagem e gestora em RH Regina Teixeira Pereira, de Seropédica (RJ), já se prepara para aderir à renegociação no mês que vem. Durante a faculdade, ela perdeu o emprego, e viu acumular as contas da casa que divide com o marido, policial militar, e um filho que na época era menor de 18 anos.

“No final foi muito difícil porque até recebi a ajuda de amigos. Eles me ajudaram com relação a passagem e tudo. E foi assim, aí eu consegui terminar”, lembra ela, que nos últimos anos precisou fazer bicos ou trabalhar como assistente ou auxiliar. “Até freelance de banca de jornal eu aceitei, ganhando uns R$ 50 para trabalhar o dia. Porque eu precisava levar o sustento para minha casa.”

Desde 2017, quando suas parcelas do Fies começaram a chegar, ela não conseguiu pagar os boletos mensais, e de vez em quando juntava as parcelas de juros para tentar não ficar completamente inadimplente.

Ficou com o nome sujo, o que, segundo ela, a impediu de conseguir alguns empregos, até que voltou a trabalhar com seu diploma de nível médio técnico em enfermagem. Nesse ano, ela conseguiu juntar mais dinheiro para pagar as dívidas e limpar o nome – só ao Fies ela devia mais de R$ 26 mil. Em março, ela chegou a conseguir 92% de desconto na dívida, mas uma falha técnica no site da Caixa a impediu de gerar o boleto e concretizar o acordo. Procurada pela TV Globo, a Caixa explicou que “o pagamento da parcela de entrada é condição para efetivação da renegociação”, e informou Regina que ela poderá pleitear a renegociação na nova rodada de setembro.

Gargalo no mercado de trabalho

Para o sociólogo José Pastore, da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA-USP), o problema da inadimplência do Fies é “doloroso”, porque o estímulo ao ingresso no ensino superior não tem sido complementado, nos anos seguintes, com oportunidades de ingresso no mercado de trabalho.

“Ele sai da faculdade animado, preparado, e não encontra trabalho correspondente àquilo que ele se formou. Muitos deles, quando encontram, acabam trabalhando numa atividade inferior àquela do estudo. Então é um advogado que vira despachante, é um engenheiro que vira desenhista, e assim por diante. Nessas condições, fica difícil para ele honrar o crédito, a dívida dele. Ele fez essa dívida com o sacrifício, esperando que ia recuperar logo trabalhando, e infelizmente o mercado não ajudou, foi ingrato.”

Ele lembra que, entre 2015 e 2016, o Brasil perdeu três milhões de empregos formais, e os anos de 2017 a 2019 patinaram nesse quesito. “Em 2020 e 2021 veio a pandemia. Quer dizer, nós estamos numa quadra de muitas dificuldades no mercado de trabalho.”

Segundo Pastore, apenas incentivar a educação não é suficiente para resolver a falta de emprego.

“O emprego depende de investimento e de crescimento econômico. A educação ajuda quando você tem o emprego, ela ajuda muito, porque você casa a capacidade do indivíduo com a exigência do emprego, dá uma alta produtividade. Esse é o melhor casamento possível. Mas quando o mercado de trabalho é fraco, e não gera emprego, e não gera emprego de boa qualidade, as pessoas sofrem com isso, é isso que está acontecendo com esses jovens.” (José Pastore)

O futuro engenheiro Bruno conta que, no seu caso, a última década foi de amadurecimento para se preparar para o futuro. “Hoje eu tenho família, tenho dois filhos, tenho minha esposa”, explicou ele, que também agora tem emprego. Ele sai toda manhã do Capão Redondo, no extremo da Zona Sul, para trabalhar em Socorro, na Zona Sul da cidade. E nesse mês, à noite, começou uma nova faculdade, dessa vez de engenharia, com apoio da empresa e sem o financiamento do governo federal.

“Hoje com faculdade já está muito difícil, né. Imagine sem. A faculdade abre muitas portas.”